Aspeto do efeito do El Niño em janeiro. Foto: NOAA
Nos últimos meses, o planeta tem sofrido o impacto do maior El Niño de que há registo desde a década de 90. Sinónimo de caos e destruição para uns, prelúdio de júbilo e êxtase para outros, a temível criança do Pacífico tem deixado poucas regiões do globo imunes aos seus caprichos, por vezes milagrosos, outras vezes maléficos, mas sempre imponentes e inescapáveis. Qual Jekyll e Hyde, mostramos as duas faces do monstro que emergiu das águas do Pacífico para "desarrumar" o planeta e, no processo, levar a comunidade internacional do surf ao rubro.
Por Susana Santos
Nos últimos meses, o mundo tem sido abalado pelos efeitos do maior El Niño de que há registo desde finais dos anos 90. A par das temperaturas anormalmente altas registadas à superfície do Oceano Pacífico, a marca clássica do fenómeno, o presente El Niño não só recebeu a classificação de strong event — algo que só acontece quando a temperatura das águas superficiais se mantem 1,5ºC ou mais acima da média durante três meses consecutivos, o que se verificou entre maio e julho do ano passado —, como desde cedo o fenómeno começou a manifestar-se em áreas nunca antes abrangidas, com a temperatura das águas superficiais nas margens da América do Norte a atingir valores nunca antes registados (historicamente o El Niño sempre se concentrou na região equatorial do oceano).
Em suma, as temperaturas no Pacífico nunca se mantiveram tão altas durante tanto tempo e numa área tão vasta, o que levou a comunidade internacional de cientistas a apelidar o inédito fenómeno de "El Niño Godzilla". O epíteto teve adesão fácil nos media internacionais, que não perderam tempo a alertar as populações para os efeitos imprevisíveis e potencialmente catastróficos de um fenómeno que a humanidade se habitou a temer mesmo quando se manifesta dentro dos padrões normais, tendendo a produzir secas e fogos florestais em algumas regiões do globo e chuvas torrenciais e inundações noutras, com consequências graves para a agricultura, pecuária e comunidades humanas.
Pedro Calado no swell do ano em JawsEm contraciclo com o resto do mundo, o presente El Niño foi também amplamente antecipado pela comunidade internacional do surf (bom, parte dela), que sempre encontra no fenómeno motivos de celebração. Produzir ondulações (muitas e das grandes) e "acordar" picos normalmente adormecidos — especialmente na costa oeste da América do Norte e, claro, nas ilhas havaianas — são alguns dos efeitos colaterais de um fenómeno que a maioria associa a destruição e caos mas uma mão cheia de surfistas (e nem se pode dizer todos...) tende a encarar com expetativa e entusiasmo.
Com efeito, as últimas semanas têm sido bem animadas na Califórnia e no Havai, com sessões dramáticas em Mavericks, surfadas épicas em Pipeline, Sunset e Waimea, momentos históricos em Jaws, o WSL Big Wave World Tour a receber luz verde em Todos Santos e a proporcionar um dos campeonatos de ondas grandes com mais ondas surfadas e maiores pontuações de sempre e o normalmente recatado sandspit de Santa Barbara a proporcionar momentos alucinantes.
Temperatura de 2015 na Terra em comparação com a média de 1951-1980. As áreas a vermelho escuro indicam onde foram registados recordes de aumento de temperatura. Foto: Berkeley Earth
No reverso da medalha, contudo, a dimensão catastrófica do El Niño tem-se manifestado de forma implacável, dando razão aos especialistas que o previram como um dos fenómenos de alteração climática mais potente dos últimos 65 anos. Qual Edward Hyde, o alter-ego maléfico do Dr. Jekyll no filme de 1960 "O Monstro de Duas Caras", o presente El Niño tem tido as suas fases de caprichosa euforia hostil, produzindo estragos um pouco por todo o mundo, da Califórnia à Austrália, do Sul de África à Indonésia. Como uma doença autoimunitária, o fenómeno nascido nas entranhas do Pacífico voltou a virar-se contra o próprio planeta, começando por provocar uma subida de 0,1ºC da temperatura média da Terra que tornou 2015 no ano mais quente de sempre (desde que há registos, há mais de 100 anos) por uma margem considerável.
Focos de fogo na Austrália a 21 de janeiro de 2016. Foto: LandgateNa Austrália, os termómetros superaram os 40ºC no estado de New South Wales na passada quarta-feira, com a cidade de Wilcannia a apresentar-se como um dos pontos mais quentes do planeta (46ºC). Em dezembro bateram-se recordes de calor no sudoeste australiano e antes disso o Bushfire and Natural Hazards Research Center, plataforma multiorganizacional especializada nas causas, consequências e mitigação de desastres naturais na Austrália e Nova Zelândia, já tinha assinalado "risco acima do normal" de fogos florestais durante o verão (de dezembro a fevereiro) em inúmeras áreas de Queensland, New South Wales, Oeste Australiano e leste da Tasmânia.
Longe de serem um fenómeno restrito ao país dos slabs e dos cangurus, as elevadas temperaturas têm assolado a maioria dos países da Asia oriental, afetando desde a criação de gado na Austrália à produção de café no Vietname. Noutras regiões do globo, o El Niño tem-se manifestado ora de forma insólita, com cobras venenosas habitualmente encontradas nas águas tropicais do Pacífico e do Índico a darem à costa em praias californianas, ora de forma dramática, com as Nações Unidas a alertarem para o agravar da fome no Sul de África causado pelas secas provocadas pelo El Niño. Ainda na Califórnia, os media alert têm-se sucedido, prevenindo a população ora para fortes tempestades no norte, ora para ondas de até 25 pés nas margens da costa sul.
Imagem captada pela NASA em outubro. Foto: NASA Earth ObservatoryContudo, à semelhança de manifestações anteriores do fenómeno, a criança mais temida do Pacífico reservou a sua pior travessura para um dos destinos mais amados do mundo do surf: a Indonésia. O El Niño transformou o país numa autêntica versão do inferno, com a revista Time a noticiar, no final de outubro, uma crise de saúde pública derivada do fumo provocado por mais de 100 mil (sim, leste bem, cem mil) fogos na região. Segundo uma notícia de outubro no jornal local Jakarta Post, a média diária do PM10 (indicador que mede pequenas partículas poluentes sólidas ou líquidas na atmosfera) na cidade de Palangkaraya encontrava-se acima de 1,000 microgramas por metro cúbico há mais de duas semanas, quando as agências especializadas dizem que a concentração de partículas poluentes no ar não deve exceder os 150 µg/m3 por cada 24 horas. Numa palavra, uma calamidade. Um dos maiores eco-desastres que a região já viveu.
Atingindo o pico no corrente mês de janeiro, as previsões indicam que a intensidade do El Niño vai entrar em declínio nos próximos meses até extinguir-se de vez em abril/maio, com um regresso progressivo a padrões meteorológicos mais tradicionais. Brevemente chegará a hora em que o monstro de duas caras dará finalmente tréguas aos que tiveram a sorte, ou o infortúnio, de o encarar. Mas tão cedo o inverno de 2015/2016 não será esquecido. Pelas melhores e pelas piores razões.
VIDEO da Greenpeace mostra devastação na Indonésia provoca pelos fogos.